Publicado em: 19/11/2019 17:33:14
Aluna egressa do curso de Letras produz crônica intitulada Ser Preto é ruim"
Iniciando as comemorações ao Dia da Consciência Negra, que ocorre amanhã, dia 20 de novembro, a nossa egressa do Curso de Letras da UNIR, campus de Vilhena, Djeine Patrícia Santos Faria produziu uma crônica intitulada “Ser Preto é ruim”. Confira abaixo.
CRÔNICA: SER PRETO É RUIM
Djeine Patrícia Santos Faria, aluna do Curso de Letras/DELL/UNIR
Como milhões de afro-brasileiras, CRESCI ACHANDO QUE SER PRETA ERA RUIM. Que ter cabelo crespo era ruim, que ter olhos negros como a uva, envoltos em glóbulos brancos nunca seriam considerado belos. Também achava que ser alta demais e ter pés grandes não era legal. Afinal, não era como as garotas que eu via na Tv. Manchas que escureciam meu corpo e um cheiro forte cada vez que eu pulava tábua ou corria um pouco mais que o normal afastavam as pessoas de mim. Cresci achando tudo isso. O problema é que nesse meu “achismo” eu estava certa.
Não me lembro de quando ou porque esse pensamento começou a me cercar. Acredito que foi nas vezes que em casa, quando havia uma discussão, eles gritavam cabelo fuá, tição, negão, para mim. Se numa briga, quando estamos chateados falamos palavras para ofender a outra pessoa, creio que essas palavras não devem ser boas. Então acho que foi aí, foi daí que eu pude concluir que ser quem eu era não agradava ninguém, que ser preta não era bom. Eu tinha que mudar, para que as pessoas pudessem gostar de quem eu era. Nessa ânsia pela mudança, de querer parecer ser igual a todos, eu pedia a minha mãe para que comprasse uma tinta bem branquinha para pintar a mim e ao meu pai, porque queria que as pessoas gostassem dele, e nunca gritassem para ele o que gritavam para mim. Foi então que eu descobri que eu não era inteiramente daquela cor; que na parte inferior dos meus braços era bem clarinho, a palma da minha mão e as laterais dos meus pés também.
Então toda vez que vinham me chamar por aqueles nomes eu lembrava que meu corpo embora fosse preto, ele não era de todo ruim, mas eu ainda precisava mudar. Minha mãe, na tentativa de facilitar minha vida, decidiu deixar meus cabelos lisos como os de Iracema, eles já eram bem negros, porém com muitíssimas curvas, como os de Negrinha. Ela não tinha paciência para cuidar de todo aquele volume que tinha na minha cabeça, muito menos eu, apenas minha irmã quem penteava meu cabelo farto. Era muito bom acordar e não precisar ir para a pia do banheiro jogar uma aguinha aqui, mais um pouquinho ali, ou ter que emprastar de creme para enfim conseguir baixar o volume que incomodava os outros. Esse milagre só durava três meses, após esse período cuidar do meu cabelo se tornava uma tarefa mais estressante do que o normal, porque ele não era nem uma coisa nem outra.
Cresci numa casa de gente branca, numa cidade de gente branca, num país de gente branca, eu tenho certeza disso, era só gente branca que eu via nos comerciais de Tv, nas novelas. Minhas bonecas eram todas brancas também. Mas como aquilo podia ser possível se eu tinha pele de outra cor? Por que eu não via em lugar algum pessoas de pele preta, cabelo crespo, lábios fartos e olhos que saltavam da órbita? Foi então que um dia, numa dessas lojas bem pequenininhas, lá em cima, separado, quase escondido, todo empoeirado, havia um bebê de cor preta. Os meus olhos se encheram d’água, fora a primeira vez que vira um boneco da minha cor. Pedi para olhar, a balconista fez pouco caso, mas o entregou em minhas mãos. Eu o olhava com tanto gosto, parecia o bebê que minha mãe desejou; uma versão masculina de mim quando criança. Devolvi à balconista. Não tive coragem de pedir para minha mãe, eu nunca pedia nada, tinha medo de ouvir um não embora nunca tivesse ouvido um, mas aquela palavra, assim como as que gritavam não me faziam se sentir bem. Mas ela como mãe, sabia internamente que eu desejava secretamente ter aquele boneco em meus braços. Ela o comprou e mais do que feliz eu fiquei, porque naquele momento eu não me sentia mais a única daquela cor.
A partir daquele momento eu buscava todos os dias por aquele sentimento, não me sentir sozinha. Queria ver, estar, ficar com pessoas que tinham a mesma cor de uma pantera, o mesmo cabelo de Oyá e o mesmo sorriso de marfim. Foi então que num certo dia, num desses domingos, fui convidada pelos meus amigos brancos para almoçar na casa de outros amigos que não eram tão brancos assim. Na verdade, de branco eles só tinham os dentes, e a órbita dos olhos, assim como eu. O que eu senti? Não sei explicar, talvez você branco não se sinta assim, porque sua mãe, seu pai e irmãos têm a mesma cor de pele que você. Quanto a mim, cresci sozinha.
Cresci como Negrinha, como tia Nastácia, e como muitas outras que ao buscar ao redor não encontrava irmãos de cor nem de sangue. Me senti em casa, mesmo não estando nela. A última vez que me senti assim foi na Bahia. Lá eu era parte de um todo, mesmo sendo apenas mais uma. Lá todos eram iguais, todos irmãos de uma única família. Pense numa substância líquida, ela é sempre uniforme, senão quando misturada a outra substância que difere de sua composição. Era assim que eu me sentia, como uma gota de um oceano, em casa, num lugar tão meu, repleto dos meus, para qualquer lugar que se olhasse, para cima ou para baixo, infelizmente, também para baixo.
Diferentemente do lugar onde eu nasci lá o cabelo crespo e a pele mais do que escura eram uma única vez normal, quem não tinha é que não era, que não pertencia. A mudança é por vezes uma opção necessária. E é preciso lutar para isso. Mandela lutou por direitos humanos na África do Sul, Policarpo Quaresma lutou pela instituição do tupi guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro, eu luto para que mais mulheres de cor preta tenham liberdade para cortar, pintar, alisar ou abusar sem constrangimento das curvas de seu cabelo.
Sobre a autora:
Djeine Patrícia Santos Faria, é aluna egressa do Curso de Letras/DELL/Unir Vilhena.
Fonte: UNIR